Enquanto repousava em seu leito natural a lua concedia, sem pressa, passagem ao sol nascente. O astro-rei, por conseguinte, estendia seus braços luminosos e abarcava tudo ao redor, tingindo em ouro as águas turvas do Negro e Solimões, bem como dos barcos que dançavam sobre eles. Assim começava mais uma dança de exaltação à vida, no coração da Amazônia. Hilton e eu seguíamos os passos e, simultaneamente à contemplação dessa indizível fresta de espaço e tempo, rumávamos à BR 319, com a mesma fé otimista a nos impulsionar para as próximas alvoradas.
Íamos, nós, acompanhados do caminhão de doações prometidas na viagem primeira. Após muito andar, deparamo-nos com a chácara São Francisco, onde iniciamos a distribuição.
Às margens do igarapé avistamos uma pequena palafita. Sobre ela, como um guardião de santuário, recebeu-nos um pequeno cachorro, que abanava alegre sua cauda e, gentilmente, trocava o latir por sorrisos de hospitalidade, convidando-nos a adentrar àquela simples morada.
Na casinha de madeira não havia porta nem janela. Uma velha rede, testemunha de muitas histórias, cruzava a diminuta sala de estar. E a calmaria do recinto, ao passo que convidava ao silêncio contemplativo, revelava a ausência dos moradores daquele lugar.
Deixamos a primeira cesta de alimentos ali, naquela sala, e demos continuidade à nossa missão, embrenhados naquela selva úmida e quente, cujo vapor soprava as árvores e precipitava o suor por nossos corpos já encharcados.
Mais à frente outro simplório casebre, onde encontramos o Sr. Miguel. Amazonense de Castanho, mora na BR 319 há longos anos – tempo suficiente para ter diminuta as vistas e a audição.
De longe acenamos bradando, sem sucesso. Resolvemos chegar mais perto. Cuidado era imprescindível, porque nos encontrávamos em meio a uma velha pinguela, situada sobre um enorme igarapé.
Sr. Miguel, um homem de muitos janeiros, veio ao nosso encontro. Ele e sua única companheira: um pedaço de madeira que, fiel, aconchegava-se à velha mão, compensando parte da faculdade locomotora de uma das pernas que já não se apressava mais.
Após entrega da doação ele nos pediu um momento, foi até seu quarto e nos trouxe um documento. Era um título de eleitor, que mostrava com humildade, em resposta ao nosso gesto.
Contive o riso e expliquei ao doce ancião que não éramos políticos; apenas simples doadores, aprendendo e recebendo da vida.
Cada parada uma emoção. E assim foi também na Escola Municipal Santa Lúcia, nos arredores da BR 319.
Começamos a distribuição e foi chegando criança… Chegando… Chegando… Chegando… Principalmente porque a média local é de oito filhos por família. E fomos inundados por uma enxurrada de olhares inocentes, mas que já haviam visto mais que muitos olhos maduros mundo afora.
Vislumbramos sorrisos de todas as idades. Até quem ainda estava dentro do ventre gritava para sair e participar da festa.
Cada criança queria contar sua história. Ouvimos muitos casos, muitos sonhos daqueles pequenos seres de enormes almas.
Chegamos, naquele instante, em um número especial: vinte e três cestas alimentícias. E continuamos a emissão.
Conhecemos Sr. Mario, que vivia, naquele instante, um caso belo e muito inspirador. Conta que estava doando seu tempo em prol de uma família vizinha. Os pais levaram a casula a um médico de Manaus e, na ausência, confiaram ao velho e bom homem a tutela dos outros três, a despeito das onças pardas e perigos pantanosos.
Percebemos, em pouco tempo ali, que, ao longo da BR 319, muitos sonhos nasceram altivos e, no decorrer daquela vida escaldante e tortuosa, morreram atropelados pela ação de nossos tempos.
A paisagem de exuberância natural contrasta com as casas de pau-a-pique abandonadas e, enquanto o Sul prospera, o Norte agoniza.
Até aquele momento já tínhamos entregue trinta e quatro cestas e, em mais uma parada, tivemos o prazer de conhecer a Sra. Raimunda, que me remeteu a um passado distante, em minha infância no interior mineiro. Ela, com sua nobreza em pele escura, as rugas que lhe adornavam a face, as mãos calejadas, o olhar cansado, o riso fácil, a humildade no trato, a gratidão, a caridade no pouco… O tempo e o sol incidem na mutação de todo ser humano, contudo, os espíritos mais elevados, para além das marcas, colecionam santidade e evolução.
Chegamos à marca de quarenta e seis cestas entregues e deparamo-nos com um projeto fantástico, chamando “Alimentando Vidas”. O líder, Gilberto, foi contemplado com um terreno na BR 319, onde construiu uma casa para abandonados, os quais são resgatados das ruas de Manaus e arredores para viverem em um lar.
A iniciativa também auxilia na recuperação de dependentes químicos, contribuindo para a restituição da dignidade do indivíduo, devolvendo à sociedade renovados cidadãos.
Seguindo nossa missão encontramos mais uma casa com um morador. Acionei a buzina da camionete e ninguém nos recebeu. Depois de muito insistir saiu um rapaz que aparentava aproximadamente vinte anos. Desconfiado, manteve certa distância. Expliquei o que estávamos realizando. Reflexivo ele observava. Perguntou o que havia dentro do baú do caminhão. Informamos que era alimento para doação. Solicitamos que se aproximasse para receber. Receoso ele negara e, com medo, voltou a adentrar a simples casa. Deixamos ali uma cesta alimentícia e fomos adiante.
Chegamos à comunidade do Rio da Prata. Ali conhecemos a família do Sr. Joel, oito filhos e pouquíssima esperança de prosperidade àquelas crianças.
Enquanto conversávamos com o simpático senhor aproximou-se de nós um garoto de aproximadamente dez anos, semblante triste e sorriso apagado, roupas maltrapilhas e chinelos demasiado gastos, cada qual de uma cor.
Lucas era sua graça. Um nome apostólico, poderoso, mas que, diferente de seu portador mais afamado, nesse contexto habitava uma vida sôfrega, ausente de quase tudo e que jamais conhecera um ambiente escolar.
Propus aos pais do Lucas levá-lo à Brasília, a fim de que pudesse ter a oportunidade de estudar e iniciar uma transformação naquele lugarejo às margens do Rio da Prata. Deixei meus contatos com os pais, que prometeram ponderar.
Assim rumamos ao último compromisso: município de Humaitá. Um pequeno logradouro que resume, com uma só palavra, em sua pertinente nomenclatura, toda essa jornada: REALIDADE.
Manoel Pessoa Filho